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(Imagem retirada daqui) |
Lembro-me de como tive medo de “ser apunhalada pelas costas” depois de ler “Enigma na Televisão”, do Marcos Rey. Do tempo que perdi tentando desfazer a tese da “Pollyanna” de que o segredo da felicidade é olhar sempre o lado bom das coisas, e tentando compreender o sentido do vôo do “Fernão Capelo Gaivota”. Da dor que compartilhei lendo “Meninos sem Pátria”, do Luiz Puntel, e da fome que senti desde então de descobrir mais coisas sobre a ditadura militar no Brasil, que me levou a ler alguns livros do meu pai, de autores como Millôr Fernandes, Carlos Eduardo Novaes e até o livro do Gabeira, recorrendo a outros livros para entender as referências históricas... Lembro-me de amar preceitos budistas em livros de monges budistas, de tentar entender os meandros do amor e da dor em livros de filosofia, e até em alguns livros estranhos dessa categoria estranha de “auto-ajuda”...
O tempo passou e continuei lendo, lendo, lendo até entrelinhas... A internet chegou, os sites de busca chegaram e um “grande livro” se desfolhou diante de mim, assustador, com inúmeras possibilidades de comunicação e enorme repositório de informações. Propagou-se a morte do livro...
Esta semana comemoramos o Dia Nacional do Livro Infantil. Imediatamente lembrei de um artigo fantástico da Cristiane Rogério que li na Revista Crescer sobre o tempo certo de “apresentar” o livro ao bebê, no qual me chamou a atenção a foto de um bebê lindo “mordendo” um livro. Nesse artigo a editora dizia que é preciso dar o livro ao bebê para que ele o veja como um “objeto querido”. E mais: “dar um livro a um bebê, seja aquele na hora do banho, seja o cartonado que ele põe na boca, na cabeça, senta em cima, joga para o lado, não importa: ele vai se lembrar do livro. E vai dar o significado que nós adultos – a sua referência – damos ao livro”.
Essa matéria foi a deixa que eu queria. Comprei dois exemplares da Coleção “Toque e Descubra” para o Heitor e mais dois livros de banho. Sentava ele no meu colo e mostrava as gravuras, alisando-as e passando as folhas. Os livros passaram a ser o brinquedo favorito do Heitor.
Quando arrumei a brinquedoteca, tive a idéia de instalar duas prateleiras bem baixinhas, “alcançáveis” por ele, onde arrumei os livrinhos seguindo o mesmo padrão dos nossos na estante. Funcionou. Ele buscava seus livros, folheava e os punha no lugar. Funcionou bem demais: ele descobriu os nossos livros!
A melhor descoberta, aos 12 meses de Heitor, foi perceber que ele aprendeu a respeitar os livros. Ele folheia nossos livros com o mesmo cuidado com que folheia os seus. Manuseia, analisa, empilha, e (às vezes) devolve ao seu devido lugar.
Somos, papai e mamãe, seres plenamente adaptados ao Google. Lemos e pensamos hipertexto. Usamos a internet, revistas e livros com a mesma intensidade, Aprofundando, generalizando, resolvendo enigmas e respondendo pequenas perguntas. Mais do que a comunicação simples, rápida e funcional, buscamos controlar o tsunami informacional sobre nossas cabeças em energia cerebral. Evoluímos do livro, mas mantemos por ele o nosso respeito e amizade...
Hoje, exatamente hoje, o Heitor “tomou” de minhas mãos o livro infantil que eu lia para ele. Olhou-me com seu olhar enigmático e levou seu livro à cadeirinha que a vovó lhe comprou, sentando e “lendo” concentrado sua historinha, às vezes “recitando” o conto em voz baixa...
Ri sozinha. Ele vê os pais lerem “em seu canto”, porque seria diferente com ele? Sua relação com o objeto “livro que lhe pertence” não imita a relação que nós temos com os seus livros infantis, lendo-os em voz alta, mas a relação que nós temos com os nossos livros. Ele entendeu. Esses são os meus, aqueles os seus, vocês lêem os meus, então eu leio os seus. Mas quando cada um lê o seu, deve-se ir para seu canto em silêncio! Que tal? :D
Somos pais imperfeitos, todos nós. Mas algumas pequenas vitórias se sobrepõem a todas as pequenas falhas. Essa é uma vitória da qual, caso consiga fazer meu filho amar a leitura até a vida adulta, me orgulharei imensamente, para além de toda e qualquer falha que possa achar ter cometido. Através da leitura, o ser humano, imperfeito por natureza, inicia sua busca sem fim pela perfeição. Ouvi uma vez a Nélida Piñon dizer que o seu paraíso era “saber tudo”. O paraíso, o Nirvana, o lugar segreto para onde nós, leitores, iremos quando nossa vida tiver fim. Enquanto estivermos sobre a terra, papai, mamãe e Heitor tentarão ser seres humanos melhores através da leitura. Digital, “analógica”, ou por qualquer meio que a tecnologia nos permitir. Leremos até mentes, se possível. Saber viver é saber ler o mundo.
Heitor lendo sua historinha. Arquivo pessoal.